segunda-feira, 30 de maio de 2011

Samaipata, tierra sin males


Nos adoratórios, ardem os fogos. Ressoam os tambores. Um atrás do outro, os prisioneiros sobem as arquibancadas até a pedra redonda do sacrifício. O sacerdote crava-lhes no peito o punhal de pedra, ergue o coração em uma das mãos e mostra-o ao sol que brota dos vulcões azuis. A que deus oferece o sangue? O sol o exige, para nascer cada dia e viajar de um horizonte ao outro. Mas as ostentosas cerimônias da morte também servem a outro deus, que não aparece nos códices nem nas canções. Se esse deus não reinasse sobre o mundo, não haveria escravos nem amos, nem vassalos, nem colônias. Os mercadores astecas não poderiam arrancar dos povos submetidos um diamante a troco de um feijão, nem trocar uma esmeralda por um grão de milho, nem ouro por guloseimas, nem cacau por pedras. Os carregadores não atravessariam a imensidão do império em longas filas, levando nas costas toneladas de tributos. O povo ousaria vestir túnicas de algodão e beberia chocolate e teria a audácia de mostrar proibidas plumas de quetzal e pulseiras de ouro e magnólias e orquídeas reservadas aos nobres. Cairiam, então, as máscaras que ocultam os rostos dos chefes guerreiros, o bico da águia, os dentes do tigre, os penachos de plumas que ondulam e brilham no ar.Estão manchadas de sangue as escadarias do templo maior e os crânios se acumulam no centro da praça. Não somente para que se mova o sol, não: também para que esse deus secreto decida no lugar dos homens. Em homenagem ao mesmo deus, do outro lado do mar os inquisidores fritam os hereges nas fogueiras ou os retorcem nas câmaras de tormento. É o Deus do Medo. O Deus do Medo, que tem dentes de rato e asas de urubu. (in Os Nascimentos, Eduardo Galeano)

A cidadela de Samaipata, hoje estância turística da elite cruceña, é um marco de encontros importantes na história do continente sul-americano. Ou pelo menos disso quer nos convencer Cezar Garcia, escritor que acaba de lancar um livro sobre a história da cidade de um ponto de vista meio-turístico. O lançamento de Samaipata, tras tus huellas teve direito até a coquetel e peça de teatro baseada no livro.

Garcia conta a historia da cidade e dos impérios que a envolveram entre 1500 e 1900. Apesar do Forte de Samaipata ter sido construido por volta do ano 800, o livro começa com o sonho de um viajante portugues em 1500 que encontra nas nuvens do mediterraneo reflexos de uma vale verde e multicolorido que acredita existir do outro lado do mar oceano. Um salto através de um portal nas nuvens e cá estamos, entre os Chanés, descritos como um povo simples mas independente, vivendo no topo do Vale de Samaipata, descanso en las alturas.

Nessa época o Império Inca já se expandira até as llanuras do oriente e se aproximava dos vales do Rio Grande e do Paraguay. O encontro entre os Chanés e os Incas é narrado por Garcia de maneira pacífica e idílica, ao que segue uma descricao dos incríves combates entre os Samaipateños e os Guaranis, que tambem já alcancavam os llanos, em busca da lendária terra sem mal, de imortalidade e abundancia.

Mas o livrinho de Garcia também permite nos aproximarmos das consequencias que a imposiçao do Imperio Inca trouxe aos Chanés, Guaranis e Chiquitanos. O representante da família real de Cuzco, Wancane, trouxe consigo uma casta de orejanos (militares, sacerdotes e cortesaos) que passam a viver das atividades executadas pelos Chanés. Logo Wancane descobre uma montanha recheada de lágrimas do sol e da lua nos arredores de Samaipata, o cerro Cayapurum, atualmente provincia de Cordilleras na Bolivia. Para recolher os metais deste cerro, Cuzco organiza uma grande empreitada com milhares de mineiros que, para sobreviverem, demandariam que mais alguns milhares se dedicassem a produzir seus alimentos. A descoberta do ouro e da prata de Cayapurum reorganiza profundamente a producao da vida material de diversas comunidades, agora obrigadas a dedicar suas vidas e seu tempo ao imperador filho do sol.

Por volta de 1533 o Império Inca é submetido a dominaçao colonial espanhola e o Imperador Atahualpa é sequestrado. O preço do seu resgate é estipulado em 2 casas de ouro de 11 pés de largura, 10 de comprimento e 5 de altura. Os orejanos se mobilizam para encontrar todo esse ouro e recuperar a vida do filho do sol ao mesmo tempo em que organizam uma contra-ofensiva. Francisco Pizarro se adianta, recolhe o ouro, mata o Inca, invade e destrói Cuzco e seu exército e enfinca a bandeira real espanhola na capital de um extenso império fundado e controlado pelo Sol e suas lágrimas.

Essa sobreposiçao de impérios, do Inca ao Espanhol pode sugerir, como é o caso de Garcia, que há mais continuidades entre eles do que costumeiramente pensamos. Dessa maneira o autor transita com facilidade entre os novos dominadores, assumindo o ponto de vista da terra de Samaipata e de seus povoadores como sucessao natural de acontecimentos determinados pelo processo civilizatorio.

Mas, por outro lado, longe de assumir e justificar os novos pontos de vista das novas dominacoes, ou reinvindicar os antigos impérios, tal aproximacao pode sugerir outra coisa: que a civilizaçao e o progresso coloniais nunca deixaram de ser uma viagem (lendária e sangrenta) em busca de El Dorado.

O Ouro como forma de objetivacao da dominacao, e o Sol, sua justificativa transcendental, personificado no Imperador, seu filho, compoe um fetichismo pré-moderno, se nos permitimos essa afirmacao, e permanecem na consciencia e na realidade de diversas populacoes, ainda que conste a especificidade totalmente nova da mediacao entre o céu e os cerros que os europeus fizeram desembarcar no Novo Mundo.

Afinal o cristianismo nunca deixou de ser uma parte fundamental da dominacao social na América Latina, por outro lado quando alguém pergunta sobre a plata é do dinheiro que quer saber.

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Garcia, Cezar. Samaipata: tras tus huellas. Samaipata, 2011.
Galeano, Eduardo. Os Nascimentos. Memória do Fogo, V.1. 2005.

Um comentário:

  1. EBA EBA, que blog legal!!! Estou adorando ler seus relatos! Desde hoje sou sua "seguidora", mas sem fogos, nem sacrifícios, por favor!!! rsrs
    super beijo, boa viagem!

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